quinta-feira, 29 de julho de 2010

Ela canta, pobre ceifeira

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.

 
Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões pra cantar que a vida.

 
Ah, canta, canta sem razão !

O que em mim sente 'stá pensando.

Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando !
Ah, poder ser tu, sendo eu !

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso ! Ó céu !

Ó campo ! Ó canção !

A ciência Pesa tanto e a vida é tão breve !

Entrai por mim dentro ! Tornai

Minha alma a vossa sombra leve !

Depois, levando-me, passai !



Fernando Pessoa

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